domingo, 14 de março de 2010

PROFECIA

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Quando enfim, pela tarde, te forem casar
Como quem vai levar a menina ao emprego,
Eu hei-de recolher-te uma vaga tristeza
Disfarçada no teu rosto,
Que a beleza mais tua, é gerada
Num desgosto!
E hei-de ouvir gemer uma saudade
Que te ficou sozinha,
Desprezada,
Nessa boca florida e tolhida
Para dizer a verdade!

Mas não posso...
Ai, não posso dizer nada,
Ao frágil corpo ardente de argila queimada
Que a minha mão ansiosa modelou!
E o silêncio de então ficará nos dois versos
Dum poema sublime,
Incompleto
Que se queimou!

E os sinos lamentarão
Indecisos...
E murcharão sorrisos
De inquietação.

Hão-de bater as tuas portas, longamente,
Sem se poder saber quem as empurra!...
Hão-de fechar-se as portas
Brutalmente,
Como ferros de prisão...
- E silenciosamente
Como tampas forradas de caíxão!

E à noite,
Pelos teus corredores,
Vaguearão penitentes,
Medonhos,
Os fantasmas de amores escondidos
Em teus sonhos!

Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939) in Poemas Campo das Letras

domingo, 7 de março de 2010

BELA D'AMOR

Pois essa luz cintilante
Que brilha no teu semblante
Donde lhe vem o 'splendor?
Não sentes no peito a chama
Que aos meus suspiros se inflama
E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragância
Que te sentes exalar,
Pois, dize, a ingénua elegância
Com que te vês ondular
Como se baloiça a flor
Na Primavera em verdor,
Dize, dize: a natureza
Pode dar tal gentileza?
Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,
Ai! vê-te por tua vida
E diz se há no céu estrela,
Diz-me se há no prado flor,
Que Deus fizesse tão bela
Como te faz, meu amor.


Almeida Garrett in Folhas Caídas

sábado, 6 de março de 2010

O POEMA EM QUE TE BUSCO É A MINHA REDE

O poema em que te busco é a minha rede,
Bem mais de borboletas que de peixes,
E é o copo em que te bebo: morro à sede
Mas ainda és margarida e não-me-deixes
E muito mais, no enumerar das coisas:
Cordão de laço e corda de violino,
Saliva de verdade nalgum beijo,
E poisas
Como ave de aço em pão se não te vejo.
Mas onde mais real do céu me avisas
É nas tuas camisas,
Calças de cor no catre bem dobradas.
E és os meus pensamentos, se te ausentas,
Meu ciúme escuro como vinho em toalha;
E o branco circular das horas lentas
Que um perfurante amor lembrado espalha.
Põe o penso no velo intercrural
Com um atilho vertical:
Rosa coberta esquiva
Quer a mão do desejo, quer
O conhecido cravo da agressão
Que estendo às tuas formas de mulher,
Com esta soma e verbal precaução
De um fónico doutor de Mompilher.

Vitorino Nemésio in Cadernos de Caligrafia
e Outros Poemas a Marga

ADORMECER

Vai vida na madrugada fria.

O teu amante fica,
na posse deste momento que foi teu,
amorfo e sem limites como um anjo;
a cabeça cheia de estrelas...
Fica abraçado a esta poeira que teu pé levantou,
Fica inútil e hirto como um deus,
desfalecendo na raiva de não poder seguir-te!

Manuel da Fonseca in Poemas Dispersos