sábado, 31 de janeiro de 2009

Saudade

"Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já…

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida…

Saudade é sentir que existe o que não existe mais…

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam…

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido."


Pablo Neruda

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Tempo oco

"Talvez amanhã a musa baloice nos diários
de bordo
e as águas embarquem na paisagem
das sílabas à vista.
Hoje foi um dia perverso: um abismo
de contratos falseados
como se a lei caísse na hora cega
de todos os compêndios.
Apetece morrer. Apetece rasgar
este evangelho segundo o tempo oco
e explodir no epicentro dos teus lábios
quentes... quentes... quentes...
incendiário timoneiro do sangue louco."


Alice Fergo, in Versos de Água,
Universitária Poesia

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Soneto de Fidelidade

"De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."



Vinicius de Moraes, "Antologia Poética",
Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960
.

sábado, 10 de janeiro de 2009

No Coração, Talvez

"No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração."


José Saramago, in Os Poemas Possíveis

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

IDEAL

Onde moras? Onde moras?

Se adivinhasse onde moras,
- Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela,
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas.
Sem ti, a vida que importa?
A Vida, nem penso nela...
Veria passar as horas
As minhas últimas horas,
Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela...

Onde moras? Onde moras?

É num castelo roqueiro?
Se é num castelo roqueiro,
Erguido na penedia,
Sobre o rochedo mais alto
À beira-mar sobranceiro,
Com a minha fantasia
Irei tomá-lo de assalto,
Esse castelo roqueiro
Erguido na penedia,
Sobre o rochedo mais alto,
À beira-mar sobranceiro...

Onde moras? Onde moras?

É nos abismos do mar?
Se é nos abismos do mar,
Sobre a múrmura corrente,
No teu leito de amaranto
Irei também descansar,
Ficando perpetuamente
Naquele perpétuo encanto
Do Rei Harald Horfagar...
No teu leito de amaranto
Irei também descansar,
Ficando perpetuamente
Naquele perpétuo encanto
Do Rei Harald Horfagar.

Onde moras? Onde moras?

É numa estrela, ilha de ouro?
Se é numa estrela, ilha de ouro,
- A vida-Láctea é uma ponte,
Subirei por ela ao céu...
Para alcançar o meu tesouro
Não há remoto horizonte,
Nem Sagitário ou Perseu...

Onde moras? Onde moras?

Se adivinhasse onde moras,
- Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela,
Veria passar as horas,
Sem ti, a vida que importa?
A Vida, nem penso nela...
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas,
Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela,
Numa extasiada emoção.

Dize-me, pois, onde moras,
Se porventura não moras
Dentro do meu coração...

António Feijó - "O poeta que morreu de amor..."

OS OLHOS

Ó olhos, de onde Amor suas flechas
contra mim, cuja luz me espanta e cega,
ó olhos, onde Amor se esconde, e prega
as almas, e pregando-as, se retira!

Ó olhos, onde Amor amor inspira
e amor promete a todos e amor nega,
ó olhos onde Amor também se emprega
por quem tão bem se chora, e se suspira!

Ó olhos, cujo fogo a neve fria
acende, e queima; ó olhos poderosos
de dar à noite, luz, e vida à morte;

Olhos por quem mais claro nasce o dia,
por quem são os meus olhos tão ditosos,
que de chorar por vós me coube a sorte!

António Ferreira
séc. XVI

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Não posso adiar o amor

"Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração."


António Ramos Rosa

domingo, 4 de janeiro de 2009

O amor que sinto

"O amor que sinto
é um labirinto.

Nele me perdi
com o coração
cheio de ter fome
do mundo e de ti
(sabes o teu nome),
sombra necessária
de um Sol que não vejo,
onde cabe o pária,
a Revolução
e a Reforma Agrária
sonho do Alentejo.
Só assim me pinto
neste Amor que sinto.

Amor que me fere,
chame-se mulher,
onda de veludo,
pátria mal-amada,
chame-se "amar nada"
chame-se "amar tudo".

E porque não minto
sou um labirinto."


José Gomes Ferreira

sábado, 3 de janeiro de 2009

Chove!

"Chove...

Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama."


José Gomes Ferreira

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Cantar

"Cantar de beira de rio:
Agua que bate na pedra,
pedra que não dá resposta.

Noite que vem por acaso,
trazendo nos lábios negros
o sonho de que se gosta.

Pensando no caminho
pensando o rosto da flor
que pode vir, mas não vem

Passam luas - muito longe,
estrelas - muito impossíveis,
nuvens sem nada, também.

Cantar de beira de rio:
o mundo coube nos olhos,
todo cheio, mas vazio.

A água subiu pelo campo,
mas o campo era tão triste...
Ai!
Cantar de beira de rio."


Cecília Meireles