domingo, 30 de novembro de 2008

A Grande Dor Das Cousas Que Passaram

"A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.
Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.
Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz
para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!"


Carlos Drummond de Andrade
Obras completas

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

"Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!"


Mário Quintana

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

VÉSPERA

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina, ingénua de Velásquez
a flutuar num mar de seda e renda.

Deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda.

António Sardinha

SETE ANOS DE PASTOR...

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só, por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,
dizendo: - " Mais servira, se não fora
para longo amor, tão curta a vida!"

Camões in Obra Completa

VELHO MOTIVO

Soneto de Jacob, pastor antigo
-Soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
Pensando em ti, como se foras Ela!

O que eu servira para viver contigo,
-tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!

E vou sofrendo a minha pena amarga,
- pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de jacob pastor!

Raquel não era dele, sempre a via,
enquanto eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!

António Sardinha

terça-feira, 25 de novembro de 2008

JOÃO RODRIGUES, AMATO LUSITANO (1511-1568)

João Rodrigues de Castelo Branco, mais tarde conhecido por AMATO LUSITANO
Médico e escritor português 1511 -1568

Em Castelo Branco
, no ano de 1511, nasceu, de uma família judaica, João Rodrigues .
Frequentou a Universidade de Salamanca onde concluiu o curso de Medicina em 1533/34.
Viveu e exerceu medicina em Lisboa , em Antuérpia, Ferrara (onde leccionou na Universidade local), Ascona, Pesaro e finalmente em Tessalónica, onde morre de peste em 1568.




Portugal, Castelo Branco, 1511:


-Parabéns, mulher. Que rico filho me deste. Vai chamar-se João. João Rodrigues. Não vai precisar de mais nomes. As pessoas são o que são e o que fazem de si. Nunca serão o que os outros fazem delas.

- Que cresça bem e lhe possamos dar todo o amor e ajuda de que vier a precisar. Parabéns, mulher. Temos um filho. Um homem

- Cresce, filho. Cresce.

- Já viste, mulher, como o nosso João está grande? Já reparaste como é atento à vida, inteligente, estudioso? Já viste como ele mantém conversas interessadas com os mais velhos?

- Este nosso João vai longe, mulher. Vai longe. E não lhe faltará a nossa ajuda.

- Mulher, vai custar-nos muito, mas temos de mandar o nosso João estudar em Espanha. Em Salamanca. A Universidade de Lisboa está de rastos, segundo dizem.

- Para o nosso filho tem de ser a melhor, porque ele merece.

- Quer ser médico e será.

- Vai para Salamanca, está resolvido. E sempre te digo, mulher, que a distância é a mesma que a Lisboa.

- Como te "llamas", amigo?

- João. João Rodrigues.

- De onde vens e onde nasceste?

- De Portugal. Em Castelo Branco. Pues ahora te llamarás João Rodrigues de Castelo Branco"

- Parabéns, João. És o orgulho dos teus pais. Estudaste. Cumpriste. És médico e licenciado pela Universidade de Salamanca.

- Agora a vida é tua. Vai em frente. O mundo espera-te. Não faças como eu agarrado que nem uma lapa a este berço de pedra.

- Sempre que sentires que deves ir em frente, vai. O caminho faz-se caminhando, digo-to hoje, quatro séculos antes de alguém o voltar a dizer para a História.

- Sinto, meu pai, que a minha vida se vai fazer de saltos para a frente e para o alto. Umas vezes empurrado pelo destino, outras pelo desejo.

- Sinto, meu pai, que os tempos estão maus e vão piorar ainda. A Inquisição não nos vai dar descanso e vai seguir-nos até nos poder apanhar nos seus longos braços e tentáculos.

- Temos que estar atentos, sempre despertos e capazes de dar resposta a esse perigo, mesmo que tenhamos que fazer um pouco mais de caminho. Assim me obrigam, e assim farei.

- E vós, meus pais?
- A nossa idade é outra, João. Por agora a Inquisição ainda está em estado larvar, lá para Lisboa.

- Ainda vai demorar algum tempo até ficarmos em perigo. Já não a receio, meu filho! Mas tu, vai. Faz o teu caminho.

- Adeus meus pais. Vou direito a Antuérpia, onde não me faltarão clientes e amigos portugueses.

- Muitos judeus ricos já deixaram Lisboa há algum tempo e por se instalaram. Farei como eles.

-Adeus, meu pai.

-Adeus, minha mãe.

(Texto de Carlos Vieira Reis)

sábado, 22 de novembro de 2008

FANATISMO

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...»

Florbela Espanca in Sonetos
Livraria Tavares Martins, 1974

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

EU E TU

Dois! Eu e Tu, num ser indissolúvel. Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo, - em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a lua e a noite, o orvalho e a selva,
- O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva -
Cheio de ti, meu ser d'eflúvios impregnou-te!

Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
- Nós dois, d'amor enchendo a noite do degredo.

Como parte de um todo, em amplexos supremos,
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu pertencemos,
Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama.

António Feijó

sábado, 15 de novembro de 2008

SOL ÍNTIMO

Os olhos sempre que os pus
Fitos no astro do dia
(Parece que se introduz
Tanta luz na fantasia...)
Sabem o que acontecia?
Fechava os olhos e via
Do mesmo modo essa luz.

Assim foi certa visão
Que tive por meus pecados!
Nunca uma breve impressão
Em meus olhos descuidados
Deu tamanhos resultados...
Que é vê-la de olhos fechados,
Ainda no coração!

(João de Deus) in campo de flores - Volume I
(livraria bertrand)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Da simplicidade

"Escondo-me atrás de coisas simples,
para que me encontres.
Se não me encontrares, encontrarás as coisas,
tocarás o que minha mão já tocou,
os traços juntar-se-ão de nossas mãos,
uma na outra.
A lua de agosto brilha na cozinha
como pote estanhado (pela razão já dita),
ilumina a casa vazia e o silêncio ajoelhado,
este silêncio sempre ajoelhado.
Cada palavra é a partida
para um encontro - muita vez anulado –
e só é verdadeira quando, para esse encontro,
ela insiste, a palavra."

Yannis Ritsos, trad. Eugénio de Andrade

domingo, 9 de novembro de 2008

IV


"Nós somos loucos, não somos?
Desta louca poesia,
Desta riqueza dos pobres
Que se chama fantasia!

Ergamos pois nossa tenda
E nosso lar de pobreza
No mais ermo desses montes,
No fundo da natureza.

Se o frio apertar connosco,
Pois não temos mais calores,
Aqueceremos os membros
Na fogueira dos amores!

Se for grande a nossa sede,
Tão longe da fonte fria,
Contentar-nos-emos, filha,
Com as águas da poesia!

Assim à nossa pobreza
Daremos a Imensidade...
Que com isto se contente
Nossa pouca seriedade.

E, pois somos loucos, vamos
Atrás dos loucos mistérios...
Deixemos ricas cidades
Ao sério dos homens sérios!"



Antero de Quental Primaveras Românticas
colares editora

O horizonte das palavras

"Sem direcção, sem caminho
escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito."


António Ramos Rosa ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990

sábado, 8 de novembro de 2008

MADRIGAL

A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:

«Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta...»

Vês como é simples e linda?

(O resto conto depois;
mas tão a sós, tão de manso,
que só escutemos os dois).

(Sebastião da Gama) - in Cabo da Boa Esperança
Edições Ática

DÁDIVA

Coisa nenhuma
foi tão verdadeira
como a tua alma
quando tu ma deste.

Deste-ma inteira...

Tua mão, que a dava,
nem me perguntava
se eu a merecia.
Dava-a e sorria,
como quem recebe.

Por que graça rara
ficaste florida,
mesmo assim despida
dessa flor pura?

(Sebastião da Gama) - in Cabo da Boa Esperança
Edições Ática

As velas da memória

"Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida

Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.

Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?

Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?

E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder"


Ruy Belo
Aquele Grande Rio Eufrates

Coitado do rouxinol!



"Passou a noite ao relento,
Do pôr ao nascer do Sol,
Sem descansar um momento,
Sempre a cantar, sem dormir,
Absorto no pensamento
De ver uma rosa abrir...
Coitado do rouxinol!
Passou a noite ao relento,
Do pôr ao nascer do Sol,
Sempre a cantar, sem dormir...

Mas o mísero, coitado!
Cantando tão requebrado,
Com tal cuidado velou,
Que adormeceu de cansado,
E os olhos tristes cerrou
No minuto, no momento
Em que, ao luar e ao relento,
A rosa desabrochou...

Coitado do rouxinol!

Com tal cuidado velou,
Do pôr ao nascer do Sol,
E tanto, tanto cantou,
A noite inteira ao relento,
Que, de fadiga e tormento,
Sem descansar, sem dormir,
Fecha os olhos, perde o alento,
No minuto, no momento
Em que a rosa vai abrir...

Coitado do rouxinol!"

António Feijó

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Que é Simpatia

"Simpatia - é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.

Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.

São duas almas bem gémeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.

Simpatia - meu anjinho,
É o canto de passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d’agosto
É o que m’inspira teu rosto…
- Simpatia - é quase amor!"


Casimiro de Abreu