*****
Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida era justamente do que eu necessitava - pôr `ciência na minha vida.Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?*
Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
*
Não achas, Mãe! Por exemplo. Há um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si - não saber cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
*
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim inteiro; sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
*
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham princípio, meio e fim. A princípio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros... mas os títulos dos livros são como os nomes das pessoas - não quer dizer nada, é só para não se confundir.
*
Na montra estava um livro chamado «O Leal Conselheiro». Escrito por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies de seus vassalos!
Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja Mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim. «O Leal Conselheiro»! Não achas, Mãe!
O Mestre escreveu o que sabia - por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres - era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
*
Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha à escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria-prima o papel onde ia assentando as confidências que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chocos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da árvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
Almada Negreiros in 4 poesias - Obras Completas
Editorial Estampa