domingo, 31 de maio de 2009

E por vezes

"E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos"

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 7 de maio de 2009

No sé

"No sé adónde vas, ni por qué caminos
te lleva el destino que nunca acierto
a descubrir la ruta de tus pasos,
la senda que conduce a tu universo.

No sé lo que siento, o qué me pasa,
que a veces la noche me desborda,
el frío de la muerte entra en mis huesos
y se adueña de mi alma de gaviota.

No sé de qué manera, ni sé dónde,
ni sé cómo, ni sé cuando empezó
a trepar la amargura por mis venas
y a herirme la negrura del carbón.

No sé por qué el amor izó sus velas
más audaces si sabía que el flujo
del viento y la marea de la vida
te arrastrarían lejos de mi mundo.

No sé con qué ternura vestirán
tu cuerpo mis abrazos si algún día
las olas derramaran en mis playas
la espuma de tu loca fantasía.

No sé qué, ni sé como, ni sé cuando,
ni dónde, ni por qué, ni de qué modo
se abrirá la serpentina del tiempo
y pondrá al descubierto tus tesoros.

No lo sé, pero te espero aquí, anclado
en la amarga bahía del insomnio."


Fernando L. Pérez Poza - escritor pontevedrés.

domingo, 3 de maio de 2009

MÃE (Confidências)

Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão!
Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Mãe! Já não volto à cidade sem ir contigo! para a cidade ser bonita. Irmos os dois juntos de braço-dado, e andarmos assim a passear; para ver como tudo está posto na cidade por causa de ti e de mim e por causa dos outros que andam de braço-dado.

Mãe! dize essa metade que tu sabes do que é necessário saber, dize essa metade que tu sabes tão bem! para eu pensar na outra metade.
Se não houvesse senão homens e saltimbancos eu ia buscar a outra metade, mas os saltimbancos estão vestidos como os homens, e os homens estão vestidos como os saltimbancos, ambos estão vestidos de uma só maneira, não sei quais são os homens nem os saltimbancos, eles também não sabem, - não há senão losangos de arlequim!

Mãe! quando eu vinha para casa a multidão ia na outra direcção. Tive de me fazer ainda mais pequeno e escorregadio, para não ir na onda.
Perguntei para onde iam tão unidos, assim, com tanto balanço. Responderam-me: Para diante! para a frente!
Fiquei a pensar na multidão.

O meu anjo da guarda disse-me: Pronto! A multidão já passou, levou um quarto de hora a passar. A multidão não é senão aquilo que levou um quarto de hora a passar. Pronto! Já está vista! anda daí!

O meu anjo da guarda está sempre a dizer-me: De que estás à espera? Vá, anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua presença!
Não sei o que o meu anjo da guarda quer que eu adivinhe em tais palavras.
Outras vezes, o meu anjo da guarda pede-me que seja eu o anjo da guarda dele.

Mãe!
Hoje acordei todo virado para diante. Assim, como tu compreendes, Mãe!
Vi as coisas do ar que havia, as coisas que estavam focadas com o ar de hoje. As lembranças já estão inteiras, muito poucos os minutos falsos.
Fiz todas as horas do sol e as da sombra. Ao chegar a noite estive de acordo com o Sol no que houve desde manhã até ser bastante luz por hoje. Depois veio o sono. E o sono chegou a horas. Antes do sono ainda houve uma imagem - um leão a dormir!
Na verdade, não há sono mais bem ganho do que o de um leão a dormir com restos de sangue no focinho, como os leões de pedra que há nas escadarias por onde se sobe depois da batalha!

Almada Negreiros in 4 poesias - Obras Completas
Editorial Estampa

ACERCA DO HOMEM E DA MULHER

Lembro-me de uma oleografia que havia em minha casa. A oleografia estava cheia de amarelo do Deserto. O amarelo do Deserto era mais comprido do que a vida de um homem se não fosse o galope do cavalo onde o árabe rapta a menina loira.
Na oleografia havia uma palmeira. A palmeira era tão pequena como a esmeralda do anel da menina loira. A palmeira era assim tão pequena porque estava muitíssimo longe.
Era em direcção à palmeira que ia a correr o cavalo.
Havia outra oleografia quando já tinham chegado à sombra da palmeira. O cavalo estava como morto por terra. O árabe, esse, ainda nunca tinha estado cansado - tinha a menina loira nos braços, como a esmeralda estava no anel.
Eram três as oleografias. Na terceira oleografia estava sozinha a menina loira a dar de mamar a um menino verdadeiro.

Almada Negreiros in 4 poesias - Obras Completas
Editorial Estampa

CONFIDÊNCIAS

Mãe! a oleografia está a entornar o amarelo do Deserto por cima da minha vida. O amarelo do Deserto é mais comprido do que um dia todo!
Mãe! eu quero ser o árabe! Eu queria raptar a menina loira! Eu queria saber raptar.
Dá-me um cavalo, Mãe! Até à palmeira verde esmeralda! E o anel?!

A minha cabeça amolece ao sol sobre a areia movediça! do Deserto! A minha cabeça está mole como a minha almofada!

Há uns sinais dentro da minha cabeça, como os sinais do Egipcío, como os sinais do Fenício. Os sinais destes já têm antecedentes e eu ainda vou para a vida.

Não há muros para que haja estrada! Não há muros para pôr cartazes! Não está a mão de tinta preta a apontar - por aqui!

Só há sombra do sol nas laranjeiras da outra margem, e todas as noites o sono chega roubado!

Mãe! As estrelas estão a mentir. Luzem quando mentem. Mentem quando luzem. Estão a luzir, ou mentem?
Já ia a cuspir para o céu!
Mãe! a minha estrela é doida! Coube-me nas sortes a Estrela-doida!

Mãe! dá-me um cavalo! Eu já sou o galope! Há uma palmeira, Mãe! O que quer dizer um anel? Tem uma esmeralda.

Mâe! eu quero ser as três oleografias!

*
Mãe!
Em cima das estátuas está o verbo ganhar, Mãe! será para mim?
Quando passo pelas estátuas fico parado. A olhar para cima das estátuas. Fico parado a subir. Não sei quem me agarra para me levantar no ar. Agarram-me por debaixo dos braços para me levantar ao ar. Para eu ver o verbo ganhar em cima das estátuas.
*
Mãe! eu não sei nada! Eu não me lembro de nada!
Ah! lembro-me de ter ajudado a levar pedras para as pirâmides do Egipto!
Também me lembro de me ter chamado José, antigamente, com meus irmãos e uma mulher!
Mãe!
Estou a lembrar-me! Tu já foste a menina loira! Eu já fui menino verdadeiro a quem tu davas de mamar! Eu já estive contigo na terceira oleografia!
Lembro-me exactamente! Quando tu me beijavas, o Sol não doía tanto na minha pele!
Mãe!
Estou a lembra-me!
E as tardes quando íamos todos juntos soltar palavras no cais e ver chegar mais laranjas!
Outras vezes juntávamo-nos na praia para nadar melhor do que os outros e deixar o sol queimar quem mais merecesse. Já as laranjas estavam contentes com o que chegasse primeiro! O melhor jovem ganhava a melhor rapariga. Os outros sabiam aquela que tinham ganhado.
Eu tinha ganho a minha.
De uma vez, quando deixávamos o cais, entornou-se o cesto das tangerinas. Foi a alegria! E uma das raparigas pôs-se a cantar o sucedido às tangerinas a rolar para o mar:
Tam
tam-tam
tanque
estanque
tangerina bola
tangerina bóia
tangerina ina
tangerininha
pacote roto
batuque nu
quintal da nora
e o dique
e o Duque
e o aqueduto
do Cuco
Rei Carmim
e tamarindos
e amarelos
de Mahomet
ali
e lá
e acolá
..
Almada Negreiros in 4 poesias - Obras Completas
Editoral Estampa

O LIVRO

*****
Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida era justamente do que eu necessitava - pôr `ciência na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?

*
Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
*
Não achas, Mãe! Por exemplo. Há um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si - não saber cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
*
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim inteiro; sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
*
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham princípio, meio e fim. A princípio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros... mas os títulos dos livros são como os nomes das pessoas - não quer dizer nada, é só para não se confundir.
*
Na montra estava um livro chamado «O Leal Conselheiro». Escrito por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies de seus vassalos!
Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja Mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim. «O Leal Conselheiro»! Não achas, Mãe!
O Mestre escreveu o que sabia - por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres - era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
*
Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha à escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria-prima o papel onde ia assentando as confidências que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chocos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da árvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
Almada Negreiros in 4 poesias - Obras Completas
Editorial Estampa